
Rafaella
Junho 2003
100 x 70 cms
Acrílica sobre tela
[Quadro perdido devido a estocagem imprópria, que resultou em danos por mofo]

Rafaella.jpg
100 x 70 cms
Impressão de plotagem s/papel
[Quadro perdido devido a estocagem imprópria, que resultou em danos por mofo]
Trecho do livro "Retratos", trabalho de graduação do curso de Artes Plásticas da FAAP:
Rafaella me conheceu como um transeunte qualquer que coincidentemente passava pela praça da FAAP onde a classe de arquitetura dela estava apresentando trabalhos. Cheguei, andei por aí a passos lentos observando, troquei meia dúzia de palavras com outras pessoas antes de me dirigir diretamente a ela. Casualidade, certo?
Eu, na verdade, já a conhecia de longa data. Muito antes de ela cortar o cabelo curto desse jeito e tingir de bordô. Muito antes de alguns piercings que contrastam tanto com o rosto suave. Suponho que eu possa dizer que sempre estive lá. Desde que ela entrou na faculdade e cruzou meu caminho em algum ponto dos corredores. Passei o observa-la de longe, do mezanino enquanto ela estava lá embaixo desenhando aquelas horríveis cópias das estátuas de Aleijadinho, ou sentada na mesma praça que já mencionei, conversando com a amiga. Ou talvez cochilando nos bancos de pedra. Houve uma vez em que quase ficou lá tempo suficiente para ser desenhada. Naquele tempo, ela exercia aquele efeito muito estranho em mim, de querer fugir por não me achar adequado, por ser esquisito demais; e ao mesmo tempo ficar para olhar para ela e, quem sabe, ser olhado. Não era tempo ainda de me apresentar. Nessas condições, eu teria talvez dito ou feito uma bobagem, ou sido apressado demais.
E fui acompanhando enquanto ela cortava e pintava o cabelo, enquanto a maquiagem ficava mais elaborada e todo o perfil de princesinha dava espaço para um visual mais alternativo, enquanto ela arranjava um namorado chamado Bruno... Em algum momento muito inicial, talvez eu quisesse aquela beleza e aquele jeitinho para mim. Mas então era tarde demais: ela estava com Bruno e eu decidindo entre Tinkerbell e Lee. Então resolvi que devia retratá-la.
Andei durante algum tempo com um filme ASA 400 entre meus pertences. Idéia besta de alugar uma máquina fotográfica com teleobjetiva da faculdade e fotografá-la sem que percebesse como tentei fazer com Lilly. E então lembrei da impressão horrível que isso causara nela quando ela descobriu e dos conselhos quando tudo foi explicado.
Muito bem, outra abordagem.
A idéia de simplesmente aparecer do nada e pedir para tirar-lhe uma foto era não só estupidamente invasiva, como digna de receber uma sonora negativa. Eu precisava ao menos não ser um rosto completamente desconhecido. Ao menos que ela lembrasse que já tinha me visto antes. Assim, aquela tarde na qual a turma de arquitetura saiu para mostrar trabalhos pareceu-me cair como uma luva.
Semana seguinte. E Rafaella já acenava para mim quando nos cruzávamos no corredor. Ocorreu-me naquela época, que eu já não estava me aproximando dela para conquistá-la. Pelo menos não por razões passionais. Queria agora mais do que tudo apenas aquela foto: o rosto novo para estudar, desenhar, pintar. A conquista daquele retrato.
Numa manhã qualquer, parei Rafaella no corredor e expliquei tudo. Que fardo retirado de meus ombros! Tão mais fácil e amistoso do que o jogo de espionagem que ocorrera com Lilly. Naquele mesmo dia tirei a foto com uma câmera digital: clique.
Rafaella sorria um sorriso ambíguo: era sorriso meigo, mas ao mesmo tempo sorriso de gente marota, esperta. Um toque de malícia. Pareado com olhos que, ao sorrir, quase se fechavam, de um jeito que mal dava pra ver o branco dos olhos. Mas a ambigüidade não era só no sorriso. Rafaella inteira era uma figura quase pueril, de tão pequena. Mas tingia os cabelos, perfurava o corpo, alterava-se a cada semana.
Aquele retrato durou quase um mês para ser feito. Tinta acrílica: tivesse sido em óleo, demoraria mais. Mas não era só por isso. O acrílico, quando seco, tornava-se uma fina camada de plástico. Matéria artificial. Artificial como talvez fosse aquela relação com Rafaella, que havia surgido por um interesse muito específico. Outras garotas que eu havia retratado eu conhecia intimamente, e a pintura parecia girar em torno de nossa relação. Submetia-me à materialidade da tinta a óleo para poder passar mais tempo com estas imagens, dedicar-me como me dedicara à amizade. Mas esta, e a precursora Lilly, eram relações que giravam em torno da pintura. Artificiais. Haveria o depois, quando a pintura já estivesse feita?
Na época, eu trabalhava nas salas da FAAP, logo após as aulas. Muita gente aparecia por lá e reconhecia a garota da pintura. Orgulhava-me. Ao mesmo tempo, em casa, brincava de pintar o mesmo retrato em um programa de imagens no computador. Ocorreu-me a relação óbvia do computador com a artificialidade também. Eu não pintava em tela e nem com tintas. Na verdade, eu sequer pintava. Pintura seria o que aconteceria quando uma máquina qualquer de minha escolha imprimisse em um papel de minha escolha aquela imagem. Tinta sobre suporte. E havia muitas opções de tintas e de suportes e conseqüentemente muitos trabalhos diferentes. Mas até lá, esta imagem permaneceria em um formato diáfano, latente. O que fazer com ela?
Da mesma forma, o que fazer com Rafaella? Para onde esta relação tão experimental iria evoluir? Percebi com algum tempo, que apesar de gostar muito do pequeno universo dela, de roupas extravagantemente belas, festas e arquitetura, eu obviamente não fazia parte daquilo, mesmo querendo. Não havia qualquer tipo de ressonância entre nós. Ou seja, não havia qualquer outra coisa externa à pintura daquele retrato que nos mantivesse unidos. Assim que, terminada a pintura, voltamos a nos acenar pelos corredores, e tocar apenas em assuntos ralos e casuais.
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