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Marcela

pedrocardosoleao


Marcela

Abril 2003

60 x 50 cms

Óleo sobre acrílica sobre tela


Coleção particular de Marcela Rebelo Tiboni


Trecho do livro "Retratos", trabalho de graduação do curso de Artes Plásticas da FAAP:


Quando Marcela entrou no curso de artes plásticas, uma professora incauta disse-lhe que ela não tinha habilidade e nem futuro nas artes. De fato, Marcela sequer tinha muito interesse no curso. Queria antes entrar em educação física e fazer esporte. Mas aquele comentário mexeu com ela, e no decorrer de quatro anos, ela saiu para provar para todos que podia ser a melhor das artistas.


Marcela era presença forte na classe. Cheia de opinião, de ímpeto. Não se calava quando alguma coisa estava errada. Em termos de ética, valores e essas coisas, parecia ser a mais correta de todos nós. Suponho que fosse justamente por ela não ter aquele desejo inicial de ser artista, que tinha um raciocínio tão diverso dos outros: enquanto nós nos deixávamos levar por delírios megalomaníacos, presunções, divagações excessivamente subjetivas, Marcela preocupava-se em fazer o que era certo. Afirmar apenas aquilo sobre o que ela tinha certeza e não opinar sobre o resto. Não quero dizer por isso que ela fosse excessivamente racional. Ao contrário, ela sabia muito bem se emocionar frente a algumas obras. Assim como sabia que há horas para emocionar-se e há horas para ser objetiva. E assim, tivemos durante algum tempo nossa primeira crítica.


Essa atitude tão direcionada, madura, ganhou-lhe a amizade e admiração de muita gente, incluindo a tal professora incauta. E a minha. Não havia nada nesta admiração que beirasse a paixão física. Era uma admiração profissional, de ter em quem se basear, de respeitar as opiniões de alguém.


Nos primeiros semestres, eu assistia a atuação de Marcela na classe tentando sempre estar fora de seu foco. Tinha algum receio de que ela atacasse meu egocentrismo, minhas presunções, me mostrasse minhas tolices. Que dissesse alguma daquelas verdades inegáveis para a qual eu não estava preparado, e que isso me fizesse desacreditar no que eu fazia. Interessante: no último semestre, enfrentei este mesmo receio ao me confrontar semanalmente com a minha orientadora.


Mas à medida em que os semestres passavam, o curso se encarregava de nos ensinar a humildade, dizimar aquelas presunções iniciais. Muita gente afirmou passar por uma fase de total descrença do próprio trabalho, estagnação, e até mudança de mentalidade. Ficou-me a impressão de que eu fui o último a passar por essas coisas. Obviamente: teimoso como eu... Marcela foi, naquela época, quem mais argumentou contra essa minha teimosia. E chegou a dizer uma vez que tínhamos algo próximo a uma “relação de amor e ódio”. Saímos daqueles tempos de desconfortos de meio de curso um pouco mais próximos.


Começou então uma época diferente e um pouco mais gostosa. Conversávamos bastante sobre tudo. Marcela lia muita coisa. Tinha uma verdadeira compulsão. Ela, então com mais convicção sobre a carreira de artes, atacava os sebos do centro atrás de livros do ramo. Tinha um gosto especial por biografias de artistas. Divagávamos sobre coisas que ela havia pescado aqui e ali das vidas de muita gente, enquanto eu ajudava-a com alguns dos trabalhos dela.


Marcela nunca teve muito domínio de métodos. Não desenhava nem pintava, tinha alergia a solventes e nada de paciência para lidar com câmeras de foto manuais. E nisso eu entrava, fotografando o início do que, anos depois, seria o trabalho de graduação dela. Chegou até a me pagar um dia qualquer coisa simbólica. Eu não quis aceitar, mas ela se recusou a tomar o dinheiro de volta.


Tirávamos rolos inteiros de filme. Ela trazia as fotos reveladas no dia seguinte. Não tenho certeza se ela conseguiu guardar tudo: seriam vários calhamaços de fotografias. E tinta. Muita tinta. Que ela espalhava nela, deixava escorrer em filetes, ou pintava o rosto e, vez por outra, uma tela intera de uma única cor.


Foi num ímpeto que resolvi fazer um retrato dela. Assim, sem motivo aparente. Seria uma coisa metalingüística: um trabalho de arte feito com base em outro trabalho de arte. Perfeito: até guardei uma das telas que ela cobriu com uma grossa camada de tinta acrílica branca. E duas fotos que ficaram no meu computador por tanto tempo que cheguei a esquecer-me delas. Nunca cheguei a levar adiante aquelas duas fotos. Faltava um clique, um maravilhamento. Uma sensação subjetiva que me impulsionasse.


Tempos depois, ela apareceu com outra fornada de fotos. Desta vez, outra pessoa estivera por trás da câmera. E ela estava fotografada lá, pintando quadriláteros no rosto. Ela espalhou as fotos em uma das mesas da faculdade, enquanto algum professor dava opiniões. E então me bateu aquela empatia com uma delas. Uma iluminação mais estranha, mais dura. O rosto tão aproximado, que dava pra ver todos os diversos tons da pele. Uma estranheza meio Gerhard Richter. Pedi aquela foto, desta vez um pouco mais determinado a levar a cabo o trabalho.


Na época, Marcela havia alugado, junto com outras meninas da nossa classe, um lugar para usarem como ateliê. Chamavam-no Ateliê Cincopias. Foi lá que trabalhei o retrato. Minha retratada jamais apareceu lá enquanto eu pintava. Responsável e ativa do jeito que era, estava sempre trabalhando à tarde. Dava monitoria em alguma exposição. Sempre fazendo o que era certo. Mas aparecia à noite, quando eu já havia partido para a USP, e comentava na manhã seguinte, toda orgulhosa e com jeito de criança, o que tinha achado da pintura.


Nos meses finais do curso de artes, Marcela esteve envolvida em várias exposições alternativas com as garotas do ateliê. Apesar das dificuldades e das brigas entre elas que eu presenciei, senti uma vontade imensa de talvez, no ano seguinte, integrar aquele grupo. E quem sabe retratar todas elas, pelas quais eu sentia uma admiração sem limites.

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