
Mamãe
Julho 2003
Óleo sobre tela
80 x 60 cms
Trecho do livro "Retratos", trabalho de graduação do curso de Artes Plásticas da FAAP:
Há quem diga que procuramos no amado uma figura semelhante aos nossos pais. Ou talvez aquilo que nossos pais não puderam ser para nós.
Resolvi retratar Mamãe nos últimos meses deste trabalho. Mas não me interessava retratar a pessoa de agora, separada de mim por um abismo de três décadas. Não estaria retratando a pessoa e sim aquele estado: minha mãe. Sublimada, a meus olhos, de qualquer julgamento de valor relativo a sexo. Precisava fazer alguma pesquisa, encontrar quem foi aquela pessoa quando tinha a minha idade. É óbvio que um lapso de três décadas não se remenda sem deixar vestígios: os tempos eram outros, o país era outro. Minha geração não sofreu a ditadura. Mas ela, com vinte anos, passou por contingências semelhantes às que eu passei com meus vinte anos. Contingências de tornar-se adulto. E por isso revistei as páginas dos álbuns de família atrás dos vinte anos de Mamãe.
Como era minha mãe?
Mamãe foi filha de dois atores de teatro que eventualmente se divorciaram. O que obviamente lhe garantiu alguns problemas relativos a pais ausentes e a dois lares: um com minha avó em São Paulo, e um com meu avô no Rio. Dizia que, quando pequena, minha avó a colocava para dormir antes de sair para o teatro e cantava-lhe a cantiga de Tutu Marambá, um gato que ficava no telhado de uma casa e perturbava o sono de uma criança. E com seu raciocínio infantil, Mamãe pensava que minha avó era Tutu Marambá. E no decorrer dos primeiros anos de fala, passou a chamá-la daquele nome complicado. Mas tudo que podia falar era uma única sílaba: “gá”. E surgiu o apelido carinhoso de minha avó.
As fotos que desenterrei dos álbuns de Mamãe eram de uma infância tímida. Mamãe se destacava das outras meninas com um jeitinho quieto, introvertido. Tinha suas amigas de infância, mas não era uma pessoa gregária. Nem era uma mulher daquelas. Mas chegou a adolescência e ela conheceu bastante gente. Amigas que ela guarda até hoje. Foi ao Paiol, jogou vôlei, participou de uma ou duas peças de teatro junto com os pais. Mas o teatro não era o mundo dela. Rendera-lhe coisas boas mas muitos traumas. Tentou alguma coisa mais sólida, exata: arquitetura. Mas logo nos primeiros semestres percebeu que não era isso. Então, a descoberta: medicina! E foi na residência, com um pouco mais idade do que eu tenho agora, no final da minha faculdade, que conheceu meu pai. Casaram-se ainda estudantes, e nasci quatro anos depois que se formaram.
A partir de então, Mamãe dedicou-se com afinco à pesquisa da tuberculose. Dizia que morrem mais pessoas a cada ano de tuberculose do que de AIDS. E parecia-me ao menos irônico que eu, seu filho, me dedicasse às artes, área antigamente tão ligada à doença. Ela chegou longe em sua área, publicou artigos, entrou para a comunidade mundial de pesquisadores sobre o assunto. Orgulho.
Mamãe e minha arte. Sendo filha de artistas, ela tinha um gosto muito refinado para artes em geral. E não sei se era pela minha imaturidade ou apenas questão de gosto, mas constantemente divergíamos sobre o assunto. O que ela gostava parecia-me às vezes tedioso. E o que eu gostava era ou incompreensível, ou banal demais para chamar-lhe a atenção. Acho que o único gosto que tínhamos em comum era por filmes densos, violentos. Aqueles sobre os quais ficávamos pensando durante dias, impressionados. Não obstante, as opiniões dela me interessavam. Mesmo que fossem contrárias às minhas, mesmo que abominassem alguns trabalhos meus (exprimindo tal abominação com todo aquele carinho de mãe...), eram-me impossíveis de ignorar. E só sentia-me verdadeiramente satisfeito com um trabalho meu após conquistar sua aprovação. Dela; do meu pai, que se interessava muito pouco pelo ramo; e do meu irmão, que depreciava tudo que eu fazia só para espezinhar-me.
Dentre as fotos envelhecidas, encontrei algumas em branco e preto. São fotos estranhas. O rosto revela muito poucos detalhes, mas o suficiente para que eu reconheça Mamãe. Apenas o formato da boca e aqueles olhos. E já é o suficiente.
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