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Makel

pedrocardosoleao


Makel 

Óleo sobre chapa acrílica 

80 x 60 cms 

[Quadro perdido devido a estocagem imprópria, que resultou em perda das propriedades da tinta a óleo]










Trecho do livro "Retratos", trabalho de graduação do curso de Artes Plásticas da FAAP: 


Cheguei em casa cheirando a solvente de tinta. 


Antes de ir para a USP, um banho ia bem. Despido, esperando a água aquecer e olhando para aqueles azulejos encardidos sem pensar em nada importante. É geralmente nesses momentos de apatia que eu tenho uma daquelas epifanias de milésimos de segundo. Lembrei de Makel. Não especificamente do rosto ou do corpo, mas dela. Da sensação que a entidade que ela era causava em mim. Da personalidade dela. Da imagem mesmo, só lampejos daqueles cachos negros e do corpo bonito. E logo em seguida uma sensação aguda e palpável de que ela nunca existiu. Ou se existiu, jamais foi minha. Então o que foram aqueles dois anos? 


O vapor embaçava o espelho quando eu abri a porta para correr para o quarto. O som do chuveiro chiava lá atrás, um leve murmúrio. Na parede de cortiça, onde pendurei entre outras a foto de Lilly, procurei algum vestígio, alguma prova cabal de que Makel algum dia foi minha. Lá estavam fotos dela preguiçosa no gramado da fazenda, ou sorrindo com vergonha e roupa casual no mesmo dia, e algumas mais antigas de nós dois abraçados. Coisa de namorado adolescente. Sim, aqueles dois anos tinham acontecido. 


Mas então por que eu olhava para aquele rosto nas fotos e tinha essa sensação bizarra de inverossimilhança? Nada, nem ninguém respondeu. Era uma sensação de que essa menina jamais havia entrado no meu círculo de conhecidos, sendo apenas um rosto familiar no meio de tantos rostos que me eram expostos por dia. Uma sensação de desrealidade1. Ainda mais dissonante era o fato de que ninguém havia até então deixado tantos vestígios, tantos rastros e tanto cansaço. 


Makel foi uma “dessas coisas da vida” que me separou de Tinkerbell. E a “alguém” forte, orgulhosa e altiva que ecoou em Lee. Tudo começou no colégio, quando disse a Tinkerbell que não se preocupasse, que Makel era apenas uma boa amiga. Mas Makel não se contentou em ser apenas uma boa amiga. Ela nunca se contentava com as coisas simples. Ela era outro tipo de mulher daquelas, porém igualmente perigosa, envolvente e misteriosa. Vários meses depois eu havia me despedido da namorada de então para passar dois anos com uma Makel que me deslumbrara em pouco tempo. Reviver estas memórias é como passar os dedos nas cicatrizes da alma. Sei pela forma da cicatriz o instrumento que a causou e o evento, com sua dor, vem à memória como se estivesse acontecendo nesse mesmo instante. Às vezes, se tal evento foi um gozo masoquista, ele parece-me agora uma idiotice impensada. Para que se machucar desse jeito? Para que abandonar Tinkerbell? 

Vestígios, rastros, cicatrizes. Traumas: Makel começou a pintar porque eu pintava. Entrou num ateliê e aprendeu uma série de macetes que eu não conhecia ou aprendi por conta própria. Em pouco tempo, fazia coisas que eu não fazia. E competia comigo, embora não o confessasse. No meu ateliê, até hoje tenho a primeira tela de um tríptico que tentei fazer. Há uma casa na colina atrás de uma floresta. Nunca cheguei a terminar: em algum ponto de seu desenvolvimento, Makel foi ao ateliê e disse que eu estava fazendo as árvores da forma errada. Apesar de poucas tentativas para retomar aquela pintura, nunca mais fiz avanços significativos. 


Ela tinha esse poder. Sabia muito bem o que dizer e como jogar o jogo para obter o que quisesse. Sabia que as pessoas reagem de maneiras muito específicas a estímulos muito específicos. Tudo isso regado a um orgulho e teimosia comparáveis aos meus. E por mais que jurasse que não fazia isso comigo, como eu podia ter certeza? Fizemos uma cena1 na fazenda uma vez, a altas horas da madrugada quando todo mundo já tinha ido dormir. Dando alguma espécie de última palavra, ela saiu de casa vestida em pijamas e foi sentar-se no banco do jardim. Frio de pouco mais de dez graus. Neblina. E ela querendo que eu fosse buscá-la lá fora para me desculpar. Lacônico, deixei um cobertor ao lado dela, que se recusava a entrar enquanto eu não me desculpasse, e voltei para dentro, para dormir no sofá. Não jogo seu jogo. Ela me acordou algum tempo depois, morbidamente gelada e queimando de raiva. 


Por que brigávamos tanto? Makel não morava aqui. Morava há uma hora de viagem. Lembro de voltar das baladas quase dormindo: o carro sabia ir sozinho. Suponho que brigávamos muito também por sermos educados de formas diferentes. Ela queria o sonho provinciano: casar-se logo, mesmo sem terminar a faculdade, ir morar comigo, sem os pais. Ter um filho ou dois. Chega de balada: você se dedica demais aos teus amigos e não a nós. Dependência: eu freqüentemente dizia que se o mundo acabasse e sobrássemos só nós, não faria a mínima diferença para ela. 


Por causa dessas brigas, chegamos a terminar uma vez. Eu queria terminar. Mas isso nunca acabaria enquanto ela não quisesse. E de fato, após alguns meses saindo juntos como “meros amigos”, eu estava de volta naquela situação. Curioso: a ferida mais profunda nessa história toda sequer foi causada por ela. 


Um dia, minha mãe me chamou. Perguntou se eu pretendia me casar com Makel algum dia. Pausa para reflexão. Eu disse que não seria má idéia, mas que não seria tão cedo. E ela logo retrucou que, talvez Makel não pensasse dessa maneira. Minutos depois, ela havia traçado um panorama tão absurdamente irreal onde Makel só estaria esperando o momento certo para engravidar propositalmente e forçar-me a um casamento prematuro. Mãe faz de tudo para proteger a cria. Nem que seja jogar de uma só vez sobre seu filho todos os seus pesadelos. Esse breve cenário dela incluía o sonho provinciano de Makel, sua capacidade para divisar estratégias para conseguir o que quer, e ainda um tempero extra: a alegação de que eu não tinha capacidade alguma para evitar ou sequer perceber esses planos sórdidos. Como eu era ingênuo... Eu nunca cheguei a acreditar que Makel fosse realmente capaz de fazer tudo aquilo. Afinal, era completamente ilógico ela jogar fora seu futuro como advogada para me forçar a casar. Mas a paranóia me fez criar uma nova lógica, que não levava isso em conta. E com medo de que esse cenário insólito pudesse pegar-me de surpresa, disse adeus a Makel. Desta vez para sempre.


Não demorou muito para que houvesse um substituto em cena. Homens são facilmente atraídos por mulheres como Makel. Mulheres daquelas. Este rapaz tinha suas semelhanças físicas comigo. Éramos do mesmo modelo, ou da mesma marca talvez. Aliás, era um antigo companheiro do colégio, que desde aquela época se aproximava de Makel. Eu juro que eu não me importaria se não estivesse me sentindo tão sozinho. Se não sentisse que ela ainda era minha. Mas principalmente, não teria me angustiado tanto se ele não fosse tão melhor do que eu. Dava-lhe tudo o que ela queria, agradava-a e aceitava jogar o seu jogo. Morava sem os pais, trabalhava para uma empresa de computadores e ganhava bem, mesmo tendo a minha idade. Que primeiras noites de insônia passei, com o orgulho ferido e raiva de todo mundo! E seis meses sentindo-me incomunicável, pois nesse tempo todo havia aprendido a comunicar-me apenas com ela. 


Mas um dia passou. Todo vício passa, se você se privar dele por tempo suficiente. É tudo uma questão de reaprender a viver depois da tempestade. Ver que o mundo era mais do que isso. Agradeço a muita gente que veio tomar o lugar dela e ser melhor do que ela. Muita gente que hoje me sorri nas minhas pinturas. 


De fato, os meses após a reabilitação foram um embate de orgulhos. Ela mostrava-me o quanto estava feliz com seu novo rapaz e os planos cada vez mais palpáveis de passarem o resto da vida juntos. Eu mostrava-lhe o quanto eu estava feliz caindo na farra com tanta gente linda que ainda queria aproveitar a juventude. Ambos querendo mostrar ao outro como a vida era melhor agora e ao mesmo tempo sentindo alguma nostalgia de coisinhas de nós dois. E se eu tivesse... E se o outro tivesse... 


Um dia decidi fazer um retrato dela: uma cicatriz visível aos outros. Ela, no restaurante onde costumávamos sentar e falar de banalidades. E então o telefone tocou. Era ela dizendo sem cerimônia alguma que eu deveria ser o primeiro a saber que ela estava noiva... 


Incomodei-me. E não sabia ao certo porque. Hoje vejo que talvez fosse porque tudo o que aconteceu estava sendo atirando no meu rosto, como um sonoro “acabou” seguido por um silêncio abafado, uma pausa dramática. Eu não a queria mais, porém doía-me o fato de que eu jamais a teria, ou sequer teria a remota possibilidade de voltar a tê-la. Nunca mais. Qualquer que fosse a importância dela na minha vida. E mais: ela estava noiva dele. Obviamente não cheguei a dizer-lhe isso. Não lhe daria o prazer do meu desconforto. Calmo, desliguei e continuei a pintura. Já me sentia melhor...

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