No segundo semestre de 2010, viajei para Londres para fazer um mestrado de um ano no Chelsea College, instituição que fazia parte da University of the Arts.
Os diretores do curso nos aconselharam a usar a oportunidade do mestrado para experimentar coisas que não estávamos acostumados a fazer. Após alguns experimentos iniciais em pintura, fiz uma oficina de performance com o artista Mark McGowan, conhecido em Londres como "Taxi Driver". E a partir daí, passei alguns meses explorando performances. Havia algo que me interessava bastante nesse meio. Quando fazemos ou vemos uma pintura, o tempo vira um elemento secundário. Temos um indício do tempo nas reações químicas que acontecem na pintura, ou na ordem de leitura dos elementos visuais. Mas dificilmente a pintura nos leva a um crescente de emotividade como acontece na música, no teatro ou até mesmo na literatura. Com a performance, havia uma chance de estar inserido em um momento. Porém me incomodava a efemeridade da performance. A inexistência de um vestígio após o fato. Então optei pelo formato da videoperformance, onde a câmera, o enquadramento e a estética visual acabavam sendo valorizados também.
A primeira performance que eu experimentei foi Animal. McGowan nos dera esse tema ("becoming an animal" - tornando-se um animal) como desafio em um dos exercícios da oficina, e uma semana para apresentar alguma coisa. O que se segue é uma tradução das minhas anotações sobre a experiência:
Acho que seria relevante escrever sobre minha experiência para a oficina de performance do Mark McGowan sobre "tornar-se um animal e a revolução" antes que a visceralidade disso fosse afogada pelas muitas tarefas triviais do dia. Eu ainda não havia lido o texto que ele linkou na página de Facebook, sobre a noção de Deleuze e Guatari de tornar-se animal. Mas acho que, de alguma maneira, eu experimentei algo do que o texto descreve. Minha ideia era simples: eu havia visto raposas em Burgess Park, perto de onde estou hospedado, e queria gravá-las em vídeo. Simplesmente porque eu nunca havia visto uma raposa de verdade antes. Então eu decidi que não ia apenas ir ao parque de câmera na mão e perseguir os bichos. Eu tentaria me tornar como eles. Eu escolhi a noite para fazer isso porque era nessa hora que eu normalmente as via. Mas também porque eu sentia que havia algo sobre tornar-se um animal como uma raposa, raro e não domesticado, que se encaixava bem na noite. O escuro permitia movimentos mais sorrateiros e estes animais não queriam ser vistos. O começo não foi fácil. Perto do dormitório, eu ainda me sentia humano demais. E a maioria das coisas que eu tentava me pareciam tolas e desajeitadas. Eu queria me esconder das pessoas e dos carros, mas pular atrás da parede mais próxima me parecia inadequado. Como se eu estivesse prestes a cometer um crime. Um crime humano. Eu tinha medo de ser pego pelas câmeras de vigilância e ser interpretado como um tipo de ladrão. Mas assim que cheguei ao parque, me senti mais confiante de que não haveria câmeras por perto. Na entrada do parque, fui recebido por um gato. Ele reagiu amigavelmente à minha linguagem corporal e chegou perto, apesar do fato de estarmos interagindo no meio da rua, sem cobertura. Havia algo relativamente poético sobre o encontro, em termos narrativos. Como se o gato fosse um tipo de guardião da entrada para o reino dos animais. Mais adiante na rua, encontrei outro gato. Mas desta vez, invés de saudá-lo e chamá-lo para perto, corri em direção a ele para afugentá-lo. Eu queria a experiência dessa outra sensação, de perigo real. Mesmo que eu fosse o perigo. O parque à noite me parecia assustador, como se eu provavelmente fosse experimentar algum grau de violência lá, sendo assaltado ou encontrando pessoas consumindo drogas pesadas, por exemplo. E eu queria ter alguma referência dessa sensação antes de entrar. Eu queria que o gato me ensinasse quando era hora de correr. Dentro do parque, houve uma mudança perceptível. Parei no limite da luz, olhando para as silhuetas das árvores no escuro e as luzes da cidade além do parque. Havia alguma presença ali, em algum lugar? Uma ameaça? Eu não tinha como saber. As pessoas passeando seus cachorros pareciam surgir da própria escuridão e passar por mim. Mas assim que eu dei um passo para dentro do escuro e meus olhos se ajustaram, eu ganhei uma percepção nova. Uma que eu não poderia expressar em vídeo. Parecia como se eu passasse por um véu para um tipo de dimensão paralela. Eu tinha a noção do parque inteiro diante de mim, das pessoas caminhando na luz como se fossem incapazes de me ver. Eu podia ver as silhuetas de outras pessoas se movendo nas sombras e compreender cada um dos seus propósitos. Eu caminhava entre as árvores, fora de vista, e observava tudo que entrava no parque. E foi assim que eu encontrei as raposas. Uma delas passou trotando por um dos postes de luz na distância e foi aí que eu percebi. Mais do que isso, percebi que elas tinham um jeito de se manterem fora de vista: já que eu só enxergava outras pessoas vendo suas silhuetas contra as luzes da cidade, animais menores ficavam fora de vista porque suas formas nunca chegavam à altura dos olhos para serem vistas contra as luzes. Elas sempre ficavam camufladas contra a grama escura. Mas assim que eu me agachei e fiquei no seu nível, pude ver duas delas na distância. Elas me pareciam desafiadoras. Deitavam-se nas passarelas de concreto, ficando lá até que viam o lampejo de alguém no horizonte. E então elas corriam para os arbustos no fundo do parque. Havia uma compreensão empolgante de que, se elas estavam sob as luzes do parque, elas estavam no outro lado daquele véu, no reino da luz. O que significava que elas não podiam me ver. Isso me permitiu chegar incrivelmente perto delas, até que o som dos meus passos na grama as alertava. Depois que elas se foram, brinquei com esta nova habilidade por mais algum tempo. Mantendo-me fora de vista. O mais difícil era lembrar de olhar em todas as direções. Acho que entreguei minha posição algumas vezes indo de árvore em árvore antes de perceber este ou aquele pedestre em uma passarela próxima. O que certamente me fez parecer um stalker. Mas eu não me importava. Voltava para a escuridão e agachava nas sombras. A adrenalina desta brincadeira era muito prazeirosa, e depois de uma hora fazendo isso, percebi que eu não sentia mais o ar frio da noite. Percebi, quando saí da escuridão para a luz, que eu estava novamente deste lado do véu. As coisas na escuridão não eram mais visíveis e toda aquela noção espacial que eu tinha tornava-se restrita às passarelas bem iluminadas e as luzes da cidade. Eu estava fazendo meu caminho de volta para tornar-me um humano.
Infelizmente, o vídeo original foi perdido devido a problemas técnicos de um HD externo. As imagens aqui são versões de baixa resolução enviadas para a minha conta do YouTube.
Animal
Março 2011
Videoperformance
8'07"
Animal (short)
Março 2011
Videoperformance
2'27"
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