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Taís

pedrocardosoleao


Tinkerbell

Agosto 2002

Óleo e colagem s/ tela

60 x 50 cms

Coleção particular de Taís Rios Salomão de Souza


Trecho do livro "Retratos", trabalho de graduação do curso de Artes Plásticas da FAAP:


Quatro anos atrás.

Naquele tempo, eu a chamava por um outro nome qualquer. Namoramos. Mas eis que houve dessas coisas da vida e foi cada um para um lado.


Um dia, ela me ligou: deixou mensagem na caixa postal do celular dando o número de casa e do celular dela. Voltei para casa correndo e liguei, movido por uma urgência que eu não sentia há anos. Ela estava estudando audiovisual e logo achei que fosse um pedido de ajuda para algum trabalho. Mas não: ela só queria me ver. Sem nenhuma razão aparente. Ela só queria me ver. Por que? Por que agora e não há quatro anos? Era alguma maneira da vida me ensinar uma lição? Confusão.


Fazia tempo que eu não ia ao meu ateliê. Estava trabalhando com fotografia na faculdade e o ateliê de pintura ficou esquecido por um tempo. Mas não havia lugar melhor para meditar um pouco do que o ateliê e a topografia das telas cruas. Voltar ao ateliê depois de tanto tempo era como rever alguém que eu não via há muito. Como rever Tinkerbell. As coisas haviam ficado em seus lugares. Poucas mudanças. A bagunça que eu fiz desde a última vez continuava lá. Como assuntos não terminados. Como o fim do meu namoro com Tinkerbell. Uma bagunça que eu nunca arrumei, e que esperava que fosse esquecida com o passar do tempo. Mas o relógio no ateliê estava parado às 10:45 de algum dia. Alguém levou as pilhas. Ou talvez tenham apenas acabado.


Saímos sim. E por falar em tempo, eram noites paralelas. Relembrando agora, não consigo compreender que aqueles finais de semana aconteciam ao mesmo tempo em que, nos outros dias, a vida prosseguia com Lee. Como adormecer em uma realidade e acordar na outra. As noites aqui duravam o quanto nós quiséssemos. E conversamos muito sobre tudo, sobre o tempo perdido, sobre as pessoas que haviam acontecido em nossas vidas nesse intervalo. E eventualmente sobre nós, há quatro anos. E tudo o que havia acontecido que nos separou. E ela confessou, em algum momento, que tinha inveja da minha arte naquela época. Que achava que eu me dedicava mais à pintura do que a ela. Mas que as coisas mudaram, e ela descobriu a arte dela, o cinema, e sofreu a mesma inveja nas mãos de outro rapaz. Lição aprendida. E então, já perdida a conta dos dias que havíamos nos visto, tirei uma máquina de fotos da mochila e levei-a ao sol para que aqueles lindos cabelos ruivos e olhos claros fossem ressaltados. Clique.


O ateliê recebeu aquela foto muito calorosamente. Impressa em papel comum, em papel fotográfico, em transparência. Todos nós no ateliê, eu, as tintas, as telas, os pincéis, o cavalete, sabíamos o que era aquilo. Era Tinkerbell fazendo as pazes comigo e com minha arte.


E então, em algum ponto disso tudo, eu parei o carro e perguntei se ela, algum dia, havia pensado em me conceder uma segunda chance.


Talvez.


A resposta demorou a vir. Enquanto isso, a tela ia sendo feita e o mundo que existiu com Lee sendo dolorosamente desfeito. Houve alguma lágrima aqui, alguma pressão ali, muito trabalho à tarde e toques de impulsividade para colar pedaços de tela. Até que finalmente a resposta veio.


Sim.


O resto são momentos de uma história que recomeçou.


"Ela entrou no quarto, vinda do banho. Linda. Esteve lá, de pé, enquanto esticava sua pequena forma para livrar-se da preguiça da tarde. Anoitecia, mas alguma luz ainda permanecia, em tons azuis, vindo através da cortina e banhando-a de novo. Eu prestava atenção em todos os pequenos detalhes do corpo dela. O volume dos seios, a leve curva do ventre. Houve uma longa pausa como se o mundo silenciasse enquanto eu olhava. Ela sorriu e questionou meu olhar. Disse-lhe baixinho que se deitasse enquanto me levantei da cama e alcancei meu caderno de rascunhos. Então me sentei no chão, nu como ela, e corri o lápis pelo papel sob aquela luz fraca. Ela dormiu enquanto eu desenhava, e seu rosto parecia muito mais encantador e doce para se desenhar do que sua nudez, que permaneceria entre nós como um caro segredo sem valor." 
"Tinha horas em que ambos ficávamos em silêncio, apenas nos olhando. Ela tinha estranhos olhos azuis: sua íris parecia tingir o branco de seus olhos de um azul pastel. Enquanto o cabelo cor de cobre tingia o resto dela de um rosa pálido. Às vezes, quando o tempo estava certo, pequenas manchas amarelas faziam com que eu percebesse seus olhos como sendo verdes. Mas também, em dias chuvosos, o azul deles sumia de leve, deixando melancólicos olhos acinzentados olhando para o mundo. "
"Aproximei-me dela para me ver no espelho. Não havia necessidade de fazê-lo enquanto escovava os dentes. Mas o jeito como ela inclinava-se na pia como se precisasse prestar atenção em algum detalhe crucial em sua boca parecia divertido o suficiente para copiar. E quando invadi seu campo de visão no espelho, ela encontrou meu olhar e tentamos não rir enquanto a espuma da pasta de dente escorria de nossas bocas para a pia. E então, em questão de minutos, estávamos ambos fazendo caretas e tentando enojar um ao outro com bocas cheias de pasta de dente. "
"O banco de passageiros do meu carro é um pequeno canto do mundo do qual ela gosta de se apropriar. Há toda uma memorabilia de coisas que ela deixa lá sem querer. De crachás dos lugares onde ela não mais trabalha a origami feito com anúncios de apartamento que lhe dão na rua. Seu tubo de glitter (pixie dust) rola em algum lugar quando eu viro à direita. Houve guarda-chuvas esquecidos no chão por mais de um mês. Ou revistas com horários de cinema dançando ao vento de uma janela aberta. E quando a tarde pinta a cidade de dourado, posso ver fios de cabelo dela que são mais brilhantes e dourados que o sol soltos por aí." 
"Ela tinha um coração que batia em um ritmo frágil. Tão frágil quanto o resto dela. Deitava-me no seu peito, naquele estado entre o sono e a vigília, e me perguntava se aquele pequeno e leve pulso era o de um coração cansado, quase desistindo; ou o de um coração terrivelmente jovem, ainda muito fraco para bater alto, mas cheio de possibilidades. Então, vagando para aquele estado de sono onde qualquer idéia é possível, eu sentia o resto dela ficar cada vez menor, com cada batida. Cada vez mais frágil. Mínimo. Minúsculo. Nesse ponto, eu já podia segurá-la inteiramente na palma da minha mão, com todo o cuidado do mundo. O menor movimento de um dedo poderia machucá-la. E eu ficava lá, agachado no nada, segurando-a com ambas as mãos e olhando entre os dedos como uma criança que acaba de pegar uma borboleta. Ou uma fada, neste caso... Ainda assim, sentia-me estranhamente em paz com aquele pulso fraco. Para mim, era o som mais doce do mundo. Algo somente para meus ouvidos."  

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