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Lee

pedrocardosoleao


Lee

Agosto 2002

60 x 50 cms

Óleo e encáustica sobre chapa de MDF


Trecho do livro "Retratos", trabalho de graduação do curso de Artes Plásticas da FAAP:



Eu poderia escrever uma novela inteira sobre o curto ano que passei com Lee. Centenas de páginas sobre o que foi aquela época e o que era aquela pessoa intensa. Como vou poder sintetizar tudo em poucas folhas?


Durante meus anos de colégio, Lee era não mais que um rosto pouco interessante em um mar de rostos pouco interessantes. Assim como eu. Foi agradável perceber aquele rosto familiar na USP. Jornalismo, como Lilly. Mas Lee era radicalmente diferente de Lilly. Não era a mulher superior. Lee era uma mulher daquelas, perigosa, envolvente, misteriosa. Uma mulher daquelas. O rosto redondo, o colo à mostra em um decote generoso, colar artesanal colocado de qualquer jeito e aquela boca... Essa boca de inferno, boca de Milla Jovovich, boca da música do Bush, a falar sem pudores.


E como falamos. De tudo. Em toda aquela falta de pudor e de limite eu encontrei conforto para falar do que eu quisesse. Até de tudo aquilo que eu tinha medo de contar para os outros. Medo de ser rotulado pervertido, louco, estúpido. Éramos ambos unidos por uma violenta compaixão: dividíamos todos os males psicológicos e seus efeitos físicos, alguns desejos e alguns cinismos e sarcasmos. Éramos igualmente perversos. E chegamos a um ponto onde ela poderia me destruir se quisesse. E ao mesmo tempo estava totalmente fragilizada nas minhas mãos. Minha flor, meu bebê.


Foram tantas coisas loucas e tantos momentos de luz e ângulo certos. Momentos circunscritos para que fossem apenas cenas perfeitas lembradas com carinho. 



Sem hesitação, ela invadiu o banheiro enquanto me banhava

após nosso ensaio de Huis Clos.

Inês Serrano.

Após tantas discussões sobre corpos e pudor,

parecia tão natural.

No entanto, houve aquele primeiro momento de desconforto.


Lutando contra a pior ressaca da minha vida,

em um estado de semiconsciência, abri os olhos e vi

que ela dançava e sussurrava alguma música,

leve como uma fada,

enquanto arrumava a casa dos amigos

onde passáramos uma noite de sexo embriagado.

Ela havia bebido tanto quanto eu e estava lá,

lépida e bela como nunca.


Cometíamos a loucura de economizar dinheiro só para poder comer sushi.

E no nosso restaurante favorito,

um lugarzinho pequeno cheio de decorações de desenhos animados japoneses,

ela ficava lá na saída, após nos empanturrarmos,

segurando meu casaco e fumando sob a luz fluorescente da entrada.

A imagem de fundo era a rua escura: tão absurdamente Hopper.

Um clima Nighthawks.


Antes de sairmos para comer.

Ela no meu quarto, acariciava uma pintura na minha parede.

Eu com medo de não ter pintado direito e das unhas dela lascarem a tinta.

Eu não dizia nada.

E ela disse impressionada que eu era talentoso.

Perguntou em seguida se eu temia não ser talentoso o suficiente.


Ela tinha uma pele como cera.

Costas suaves e belas como a banhista turca de Ingres

que eu acariciava enquanto olhava-a nos olhos através do escuro.

Sequer dava para ver direito,

mas se tivéssemos ficado assim mais um pouco,

eu teria memorizado aquele rosto e aquela boca

e desenhado em inúmeras folhas do meu caderno...


A foto e o retrato de Lee foram apenas um acontecimento ínfimo em um mar de outras situações memoráveis. Tão ínfimo, que sequer vale mais que um parágrafo nestas páginas. Mas foi o momento de luz e ângulo certos que escolhi para ser congelado em pintura. Ela recusou, fez manha, deu qualquer razão para não existir aquela foto. Mas eventualmente...


E como termina a história?


Durante todo aquele tempo, havia um pensamento no fundo da minha consciência, transmitindo-me incessantemente uma sensação de dejá vu. Houve alguém antes de Lee em quem eu havia encontrado uma ressonância parecida. Eu havia machucado esse alguém e me machucado bastante. Mas ela era forte, orgulhosa e altiva; e superou tudo isso. Virou a mesa e se vingou. Makel. E cada vez que eu e Lee brigávamos, essa sensação de poder prever como tudo isso ia acabar ficava ainda mais forte: estava nas reações idênticas de ambas, nos exageros raivosos. Estava na minha relação com aqueles corpos. Eu sabia que eram pessoas diferentes, tempos diferentes. Mas não importava: tive receio de passar por tudo aquilo novamente. Tive trauma. Fiz de tudo para deixar bem claro que não queria envolver-me mais do que já estávamos envolvidos (e seria possível?). Fugi.


Quis o destino que outra pessoa do meu passado aparecesse justamente nesse momento, para completar o quadro: Tinkerbell. Houve uma época em que tive que escolher entre Tinkerbell e Makel. Não me arrependo de ter escolhido a segunda, apesar de tudo o que aconteceu. Mas quando tive que fazer esta nova escolha entre Tinkerbell e Lee, tão semelhante à antiga, resolvi tomar outra decisão. Adeus, Lee.


Quando o ano seguinte começou, apareci na USP para receber os bixos. Esperava alguma hostilidade ou ao menos ser totalmente ignorado por Lee. Esperava ao menos o choro. Cheguei no centro acadêmico e sentei em um daqueles sofás carcomidos. Ela estava sentada à minha frente. Não falamos, sequer fizemos qualquer contato visual. Tensão. Até que uma aluna de artes cênicas comentou que estava ensaiando Huis Clos. E como a corda de um arco retesado que é solta das mãos do arqueiro, imediatamente nossos olhos se encontraram. A tensão sublimada: nós rimos. Abençoada seja aquela maldita peça que nunca chegamos a encenar!


É claro que as coisas entre nós nunca mais foram como no começo. Após tudo aquilo, seria impossível. Mas ao menos havíamos escolhido não nos ignorarmos como idiotas. Com o tempo, Lee encontrou outro rapaz, outra turma. E guardou-me em algum lugar, como um boneco na prateleira, que ela ainda pega entre os dedos de vez em quando e examina. Só para lembrar de tudo.

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